Blog

Compartilhe

Um pouco de cultura chinesa na virada do ano chinês

Autor: Christiane Dumont

(Texto escrito para a revista Coaching Brasil, edição 86 - Julho 2020)

“Imagine que, num belo dia, um disco voador o abduzisse e depois o soltasse num local totalmente estranho. Bum! Você cai de dentro da espaçonave, levanta e olha em volta. E o que você vê? Pessoas estranhas, que se vestem de forma estranha; se acocoram para descansar as pernas; usam buracos em vez de privadas; comem cachorro, cobra, escorpião, lagarta; gritam, se empurram, furam fila. Agora imagine que, neste novo local, você não tem carro, não tem emprego e perdeu a capacidade de se comunicar: não fala, não lê e muito menos escreve a língua dos habitantes. E você, que sempre vestiu a capa de super herói para os filhos, não consegue dizer o endereço de casa para o motorista de taxi e pede comida no restaurante apontando, com o dedinho a foto dos pratos, fazendo carinha de nojo quando eles chegam à mesa. A toda hora você se pergunta “de quem foi mesmo essa ideia maluca de embarcar nesta viagem interplanetária!”.

Foi assim que, há 9 anos, eu descrevi meus primeiros meses de adaptação à China, onde moro até hoje. Esta sensação de extrema vulnerabilidade não acontecia, apenas, quando alguns gatilhos emocionais específicos eram disparados em minha mente. A vulnerabilidade era parte do meu estado emocional quotidiano, do acordar até o dormir, e, para não dizer, parte até o dos meus sonhos.

Aos poucos, a sensação de vulnerabilidade, por estar fora do meu país, foi diminuindo. Por outro lado, ela foi ficando cada vez mais evidente em minha vida profissional, à medida em que os aspectos culturais começaram a interferir, diretamente, no resultado final do processo de coaching com meus clientes internacionais.

Em busca de auxílio para entender melhor as questões culturais, me deparei com o trabalho de Phillipe Rosinski que, hoje, é um dos grandes pilares da minha carreira como coach.

Segundo Phillipe Rosinski, autor do livro Coaching Across Cultures e primeiro MCC - ICF da Europa, os conceitos de coaching e interculturalidade sempre foram tratados de forma separada. Os profissionais especializados em interculturalidade são, na maior parte das vezes, pesquisadores, acadêmicos, educadores, políticos ou mediadores. Em resumo, generalistas que entendem os desafios do mundo multicultural, mas sem o preparo necessário para exercer o papel de coaches.

Como descrito no livro, o entendimento dos valores culturais, atrás de cada nacionalidade, é de extrema importância para se praticar um coaching eficiente.

Por exemplo, um gerente japonês pode começar um discurso se desculpando por estar mal preparado para falar à frente de uma plateia tão ilustre. Pela perspectiva ocidental, ele poderia ser percebido como um executivo com necessidade de trabalhar aspectos como baixa autoestima e falta de confiança. No entanto, pelo contexto da cultura japonesa, o comportamento de se colocar numa posição de extrema vulnerabilidade é apropriado e, até mesmo, esperado.

Com o objetivo de integrar as duas áreas e criar uma linguagem universal para falar de cultura, Rosisnki desenvolveu uma ferramenta chamada de COF,(Culture Orientation Framework), que foi baseada em características culturais estratégicas levantadas por célebres “interculturalistas”, tais como Florence Kluckhohn e Fredrick Strodtbeck ; Edward Twitchell Hall; Geert Hofstede e Fons Trompenaars.

As 17 dimensões, organizadas em 8 áreas principais, são:

 

 

Foi somente após obter minha certificação para ministrar o COF, que consegui entender, a fundo, alguns aspectos da cultura chinesa, principalmente aqueles relacionados à vulnerabilidade.

Vamos a eles.

Conforme explicado no quadro acima, na área relacionada ao Senso de Poder e Responsabilidade, há três dimensões:

Controle – As culturas onde o Controle prevalece acreditam que temos total domínio sobre nossas vidas e que podemos modificar qualquer acontecimento à nossa vontade. A cultura americana, por exemplo, tem uma clara preferência por esta dimensão. Coaches como Tony Robbins nos dizem, todos os dias, que podemos fazer o que desejamos, assim como as propagandas da Nike, “Just do it”, ou da Adidas, “Impossible is nothing”.

Humildade - A vida nos oferece limitações que são inevitáveis e às quais precisamos aprender a nos render. Uma catástrofe natural, uma doença fatal ou mesmo uma pessoa que aparece ou desaparece da sua vida requerem que sejamos humildes, para conseguir entender e aceitar o que não está sob o nosso controle.

Harmonia - A harmonia está justamente em entender que podemos encontrar um equilíbrio entre o Controle e a Humildade.

Os chineses preferem navegar pela dimensão da Harmonia, que é um princípio do Taoismo. O mestre Laozi pregava a convivência harmoniosa dos homens com a natureza, cujos princípios podem nos trazer grandes ensinamentos.

O Ying e Yang é um exemplo de harmonia. Ying é o feminino, passivo e doce e, por que não, nossa parte mais vulnerável. Yang é o masculino ativo e sólido. Tudo no universo possui o Ying e o Yang e, segunda as tradições chinesas, devemos experienciar os dois lados todos os dias.

O Feng Shui, que quer dizer vento e água, prega que precisamos nos alinhar com a natureza. Isso é levado tão a sério que, em Hong Kong, os prédios do HSBC e Bank of China foram construídos seguindo as recomendações desta teoria.

Adotar a dimensão da Harmonia, em detrimento do Controle e Humildade, ajuda os chineses a lidar melhor com situações de vulnerabilidade, aceitando o que não pode ser controlado e lutando por aquilo que está em suas mãos.

Na dimensão Harmonia encontra-se, ainda, uma das principais propriedades da cultura chinesa que é o conceito do “Perder a Face”. No Brasil, poderíamos traduzir por perder a dignidade ou o respeito diante de outra pessoa.

Na época de Bush, como presidente do Estados Unidos, e Hu Jintao, como chefe do Partido Comunismo chinês, vários incidentes diplomáticos aconteceram e foram abafados pela imprensa chinesa. O pior deles foi quando Hu Jintao saiu do palanque pelo lado errado e foi puxado, pelo braço, por Bush. No Brasil, os dois ririam, bateriam nas costas e o incidente acabaria até estreitando a relação. Na China não é assim.

Aqui, qualquer deslize, que faça com que a outra pessoa fique em uma posição de vulnerabilidade, deve ser evitado. Rejeitar um convite para jantar, interromper alguém quando está falando, não mostrar respeito pelo chefe ou por uma pessoa mais velha, tudo isso pode levar à “perda da face” e a consequências drásticas do ponto de vista dos relacionamentos.

Isso me leva, diretamente, para uma outra área relacionada a Sistemas Organizacionais, onde temos as dimensões de Hierarquia e Igualdade.

Hierárquico - A sociedade e organizações precisam estar estratificadas para poder funcionar direito.

Igualitário - As pessoas são iguais, embora exerçam diferentes papéis na sociedade.

Confúcio viveu numa época conturbada da história da China, de 551 – 479 AC, numa era de muita instabilidade política e social, e sua principal preocupação era a de trazer ordem e harmonia para o país. Ele acreditava que todas as pessoas tinham um propósito na sociedade e, que se cada um fizesse o seu papel, a paz estaria garantida.

Existiam os que mandavam e os que obedeciam: Governo e povo; Maridos e esposas; Pais e filhos; Idosos e jovens. Até hoje, é assim que a sociedade chinesa funciona.

Na cultura hierárquica, a opinião do chefe precisa ser respeitada, porque está pré-estabelecido que ele sabe mais do que o resto do time. Questionar uma decisão do chefe leva a uma grande “perda de face”.

Meu marido gerencia um time multicultural, numa multinacional americana aqui na China. Seu maior desafio é fazer com que seus funcionários manifestem suas opiniões nas reuniões de trabalho. Se deixar vulnerável, ao expor sua opinião frente aos colegas de empresa, é um pesadelo para os chineses. Questionar o chefe perante o resto do time, mais ainda.

Dizem que o filme Avatar fez tanto sucesso na China por conta do mote “I see you - Eu vejo você”. Num país com 1.4 milhão de habitantes exercendo papéis pré-estabelecidos, sem poder manifestar sua real opinião, saber que está sendo visto por alguém pode fazer toda a diferença.

Finalmente, na Área Noções de Território e Fronteira, temos as dimensões Protetivo e Compartilhador.

Protetivo

Mantém em privacidade a vida pessoal e os sentimentos.

Compartilhador

Constrói relacionamentos próximos, através do compartilhamento de emoções.

Os chineses são protetivos da sua intimidade. No entanto, a definição deles de “intimidade” é diferente da nossa.

Perguntas como “quanto você ganha, quanto o seu negócio fatura, quanto você paga de aluguel, qual a sua idade, por que você engordou ou por que seu cabelo não está tão bonito” não são consideradas invasivas. Desde criancinhas, as notas na escola são faladas em voz alta para todos saberem quem são o pior e o melhor aluno da sala. Portanto, perguntar quanto a pessoa ganha não passa pela questão da vulnerabilidade.

Por outro lado, as emoções precisam, a qualquer custo, ser protegidas, para não dizer, escondidas.

A nossa forma latino-americana de se livrar do estresse, falando abertamente sobre nossos problemas, não existe na China. Sentimentos não devem ser compartilhados, nem mesmo com os parceiros românticos, ou principalmente, com eles.

Certa vez, eu tive uma cliente que se sentia muito sozinha. Ela me disse que dividia o apartamento com duas outras mulheres há um ano e, até aquele momento, não sabia seus nomes.Todas essas histórias de suicídio entre chineses, em minha opinião (e isso é apenas minha opinião) residem nesta dimensão: cada indivíduo necessita lidar com seus próprios problemas e morrer com eles, se for preciso.

Como sabemos, esconder a vulnerabilidade não é o mesmo que não se sentir vulnerável. Durante o auge do isolamento social, por conta do coronavirus, foram criados centenas de grupos de apoio a chineses que “perderam a face” ao perder o emprego, o sustento e os relacionamentos derivados dele. Em resumo, chineses que, de uma hora para outra, se viram afogados em emoções, sem preparo para lidar com elas.

Hoje, após nove anos imersa na cultura chinesa, aprendi a navegar na dimensão da Harmonia e a aceitar que jamais conseguirei entender tudo o que se esconde na mente e no coração do meu vizinho de porta.

E isso me faz lidar, muito melhor, com minha própria vulnerabilidade.

 

 

Christiane Dumont

Membro do MCI – Mentoring Coaching Institute

Membro da ICF – International Coach Federation

Coach de Vida e Carreira

Autora do livro: Como Morar na China sem Engolir Sapo nem Comer Cachorro 

Site: christianedumont.com

Insta: chris.dumont.rotstein